sexta-feira, 26 de novembro de 2004





Fernando Valle morreu aos 104 anos

PS de luto com desaparecimento de um dos seus fundadores



O médico Fernando Valle, fundador do PS, morreu hoje, em Coimbra, aos 104 anos, informou a Câmara Municipal de Arganil, em comunicado. Exerceu a profissão durante meio século e retirou-se há quase 30 anos. Como político, notabilizou-se pela luta pela liberdade e democracia, sendo fundador do PS.


O presidente honorário do PS, Fernando Valle, "teve uma morte serena" enquanto dormia na sua casa, em Coimbra, disse hoje o presidente da Câmara de Arganil. O autarca socialista Rui Silva, amigo e conterrâneo de Valle, disse à Lusa que este foi encontrado de manhã por familiares já sem vida.

Fernando Valle nasceu há 104 anos na freguesia de Coja, Arganil. O corpo segue ainda hoje para Coja, devendo o funeral realizar-se amanhã à tarde, para o cemitério local, em hora ainda a
definir.

Valle começou a exercer medicina em 1926, depois de terminar a licenciatura em Coimbra, quando ainda não havia estetoscópio, antibióticos ou análises, mas herdou do seu pai o espírito de "João Semana", empenhado sobretudo em ajudar as pessoas.

Foi médico municipal e delegado de saúde, funções de que foi demitido por Salazar. Graciosamente continuou a tratar os pobres, na misericórdia e em clínica liberal, durante 50 anos.

A Ordem dos Médicos, no final dos anos 90, criou o Prémio Dr. Fernando Valle, destinado a distinguir o trabalho dos clínicos gerais, um galardão que particularmente o sensibilizou, por o ver como uma homenagem à forma como desenvolveu a actividade em benefícios dos desprotegidos.

A Ordem dos Médicos (a cuja comissão Regional do Centro presidiu, entre 1975 e 1989) distinguiu-o também com a Medalha de Ouro do Cinquentenário. Em Arganil exerceu também o cargo de director clínico do Hospital Condessa das Canas. Neste concelho fundou o posto médico de Assistência Folques, onde os cuidados prestados foram sempre gratuitos.

Décadas de luta apaixonada

Também na política, se notabilizou pela luta pelo bem-estar social e pela liberdade, sendo um dos fundadores do PS. Ao mais velho maçon do mundo movia-o o altruísmo: "O que me levou à maçonaria foi o forte sentido que eu tinha da ordem, das pessoas; ou seja, o sentido da vida propriamente dito", disse em entrevista ao Expresso, há dois anos.

Galardoado com a Ordem da Liberdade (Grande Oficial) e Ordem de Mérito (Grã-Cruz), Fernando Valle, ainda enquanto estudante de Medicina na Universidade de Coimbra, participou nas lutas
reivindicativas e progressistas da Academia.

Integrou as comissões de candidatura à Presidência da candidatura de Norton de Matos, Quintão de Meireles e de Humberto Delgado. Em 1962, foi candidato a deputado por Coimbra pela Oposição Democrática.

Valle pertenceu à Frente Patriótica de Coimbra, embora sem ser comunista, e uma cilada montada por um colega do grupo levou-o à prisão do Aljube, durante três ou quatro meses. Foi também militante e dirigente do MUD, Aliança Republicana e Socialista e Acção Socialista.

As actividades oposicionistas ao regime ditaram a sua detenção pela PIDE e obrigaram-no a julgamentos, em diversos momentos. Fez parte das 27 figuras que, em 1973, fundaram na Alemanha o Partido Socialista, estrutura que, sob a liderança do seu amigo Mário Soares, pretendia derrubar regime ditatorial instaurado em Portugal desde 1926, e construir uma sociedade mais fraterna.

Depois do 25 de Abril foi o primeiro governador civil de Coimbra, "obrigado de certa maneira por Mário Soares", um cargo que desempenhou entre 1976 e 1980. Logo após a "Revolução dos Cravos" foi presidente da comissão administrativa da Câmara Municipal de Arganil.

A autarquia que o viu nascer, e onde desenvolveu grande parte da sua actividade profissional e cívica, galardoou-o com a Medalha de Ouro do Concelho de Arganil. Amigo, desde a década de trinta, do malogrado poeta Miguel Torga - pseudónimo do também médico Adolfo Rocha - durante o seu percurso estudantil na Universidade de Coimbra foi membro da direcção do jornal académico "Humanidade", presidida pelo escritor Vitorino Nemésio.

Da sua actividade cívica e associativa destaca-se também a fundação da Sociedade Recreativa Argus, de que resultou mais tarde a Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários Argus, juntando todas as associações existentes em Arganil.

Após a morte de Tito de Morais, em Dezembro de 1999, foi escolhido para novo presidente honorário do Partido Socialista. Fernando Valle afirmou na ocasião que a distinção não o entusiasmava. Ao longo da sua vida sempre recusou certas funções políticas por sentido de responsabilidade e por ver a política numa perspectiva romântica e ideal.

Contudo, esteve sempre atento ao que se passava no país e no seu partido, porque se considerava "um democrata, de maneira profunda, muito ligado ao povo". Nas últimas eleições para secretário-geral do PS foi o primeiro subscritor da candidatura do seu amigo Manuel Alegre.


in www.sic.pt

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